Para Belchior Com Amor

Alucinação

Por Thiago Arrais

Se meu pai não houvesse me cantado, somente os dois, nas águas de um açude que entardecia no Cariri, "mas se você quiser me atirar, mate-me logo, à tarde, às três, pois à noite eu tenho um compromisso e não posso faltar, por causa de vocês", e me mostrasse o sorriso ironicamente cúmplice à minha perplexa infância; se Xico Sá não escrevesse - muito depois, sobre tardes caririenses ainda mais antigas no Balneário do Caldas a ouvir o mesmo cantor debo-

chado (não meu pai) como quem toma uma cachaça (e tomava), acompanhado do pai - não o meu, mas o

seu "Big Jato" do filme de Claudio Assis - que é diretor de que muito gosto e portanto entra nesta crônica memorial; se Ricardo Guilherme, amigo a quem costumo prestar reverente atenção em suas considerações poéticas, não insistisse que se trata de um dos

nossos maiores letristas...

A música Alucinação, de Belchior, integra o álbum Alucinação, lançado em 1976

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A Palo Seco (Ou "Uma faca só lâmina")

Por Ana Karla Dubiela

No campus da UFSC, um grupo magro de estudantes divide o último baseado à espera do show. Um frio cortante gela a espinha e a grama orvalhada refrigera a bunda. Mais de uma hora de atraso, por

problemas técnicos. Goela seca, grana curta. Uma "vaquinha" garante o garrafão de vinho doce que

compramos ali mesmo no bairro Pantanal, na casa de uma camponesa de rosto de maçã, que sempre

vem nos atender arrastando os chinelos, a qualquer hora da noite. Nunca decorei seu nome esquisito, mas guardo até hoje seus traços europeus e o orgulho com que nos dava para provar dezenas de vinhos, armazenados por gradação de cor, na antiga Frigidaire vermelha. Bebíamos tudo e quando finalmente nos decidíamos pelo mais barato, já estávamos devidamente alegres...

A música A palo seco, de Belchior, integra o compacto duplo lançado em 1973

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Apenas um rapaz latino-americano

Por José Américo Bezerra Saraiva

Caro, divino e maravilhoso rapaz latino-americano.

Você disse que vinha, e veio, lá do Norte, com o mar nos olhos. Era noite sem vento, e eu nem cri na minha sorte. Houve curiosidade, um calmo susto, alguma palidez por trás do ouro do seu rosto. Quero ser justo! Mesmo que não pudéssemos manter a lua cheia acesa, ou não, ainda, nem no seu nem no meu coração, eu vi você, uma das coisas mais lindas da natureza e da civilização, eu vi você, saindo do sertão da sua solidão para um sonho feliz de cidade a que depressa aprendeu chamar de realidade. Eu vi você conduzido pelas canções do rádio aportar numa infelicidadania e viver na rua, sem dinheiro no banco ou parentes importantes. Eu vi você caminhando o seu caminho num sol de quase dezembro. Eu vi você... E sei no quando agora em mim nada valer mais do que o seu e o meu caminho sob o sol no signo da alegria...

A música Apenas um rapaz latino-americano, de Belchior, integra o álbum Alucinação, lançado em 1976

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Como nossos pais (ou "O que há de vir")

Por Ricardo Guilherme

Pela minha paixão você me pergunta. Digo que estou encantado com uma nova invenção, pois vejo vir vindo no vento o cheiro da nova estação. Aí você talvez até venha me dizer que eu estou por fora ou então que estou inventando, mas se disser, diz porque você ama o passado e não vê que o novo sempre vem...

A música Como nossos pais, de Belchior, integra o álbum Alucinação, lançado em 1976

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Conheço o meu lugar (ou "Belchior mora no porão")

Por Ethel de Paula

Uma voz feito faca corta o mormaço da tarde, suspendendo o tempo. Ela diz sobre um lugar. Um lugar utópico, intangível, inalcançável. Um Nordeste ficção que nunca houve, onde a vida comovida, livre e triunfante é própria da pessoa. Um abraço-canção em torno do homem e sua utopia de liberdade, ímpeto ainda hoje afinado ao pensamento dos gregos, aqueles que, na Antiguidade, intuíram que homens livres só poderiam governar e cuidar de outros homens livres quando se dedicassem à sobre-humana tarefa de governar e cuidar de si mesmos. Algo como

um aprendizado dos prazeres, lida infinda e de fundo existencial, individual e coletiva a um só tempo, abrindo passagem para sujeitos aptos e sensíveis à construção de uma vida bela, uma existência esculpida à exaustão como obra de arte...

A música Conheço o meu lugar, de Belchior, integra o álbum Era uma Vez um Homem e Seu Tempo, lançado em 1979

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Coração selvagem

Por Cleudene Aragão

Dirigindo para um pequeno povoado de praia, perto de Fortaleza, com o coração na boca, vou pensando o que é que eu vou perguntar para o Belchior.

Será que eu vou conseguir falar, diante do meu maior ídolo? Do autor da minha canção preferida, entre todas do Universo? Vai ser tipo o que o meu pai dizia sobre o que vemos depois da morte: sei como vai ser não, só vou saber quando chegar lá.

O trato foi que eu não revelasse a ninguém onde ele está, nem desse qualquer detalhe que pudesse identificar seu paradeiro. Aceitei, claro. Aceitaria qualquer coisa por esse encontro. Ainda não acredito que ele topou, nem sei o porquê.

A música Coração selvagem, de Belchior, integra o álbum Coração Selvagem, lançado em 1977

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Fotografia 3x4

Por Raymundo Netto

Quanto amei ou deixei de amar,

é a mesma saudade em mim.

Fernando Pessoa

"Sobral?", riu-se. "E existe isso?"

"Existe, seu guarda. E não é só no Norte, não, viu? Na Europa também. O senhor já deve ter estado por lá, claro."

O policial, que tirando a farda e a arrogância, não era muito diferente daquele moço encantado, de cabelos ventaneados, basto bigode e surrado pela cidade grande, percebeu a mangação, lhe devolveu o documento e advertiu:

"Tome juízo, rapaz. Assim como você, tem muitos aqui no xilindró."

Não era mentira. Sozinho, tarde da noite, numa esquina deserta da Lapa, sem dinheiro no bolso e com perversa juventude sobrando no peito, caminhava no descompromisso do tempo para a praça

Mauá, ou na direção de onde nasce o Sol, esperando a noite passar - aprendera com a noite fria a amar mais o seu dia, assim como pela dor o poder da alegria - ao encontro de um camarada, como ele, a morar na filosofia (leia-se "na rua"), que se sustentava na venda de cachorros-quentes e refrigerantes na av. Atlântica...

A música Fotografia 3x4, de Belchior, integra o álbum Alucinação, lançado em 1976

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Galos, noites e quintais

Por Joan Edesson de Oliveira

Quando dei por gente a primeira vez, num sertão distante no tempo, profundo na geografia do país, já havia um tempo negro entre nós, e a força já fazia conosco o mal que a força sempre faz.

Quando meus ouvidos de menino magro e triste nasceram para a música a primeira vez, fazia

um tempo que era de sussurros, de meias-palavras, de coisas não ditas, de pessoas que se iam para não mais voltar. O que me chegava pelo rádio, naquele lugar tão longe, falava de coisas que eu ainda não entendia direito, de coisas que eu ainda aprenderia, num longo caminho que mal começara...

A música Galos, noites e quintais, de Belchior, integra o álbum Coração Selvagem, lançado em 1977

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Na hora do almoço

Por Gero Camilo

No centro da sala, diante da mesa

No fundo do prato, comida e tristeza

Belchior

Sol de comer sombra, e eu meio-dia e meiohomem, querendo engasgar de tristeza e fome. Até

ontem parecia que não havia por trás da minha casa, depois que o leite desceu pela mão e as pernas

tremeram de prazer e eu quase caí no chão do quarto, depois que o pau gozou com o vaivém da

mão, os pelos enrolaram junto com as ideias e pensei... deve haver pra mais longe. Restaria a família.

Ficariam ali petrificados à espera da poeira do Vesúvio, da goteira de Canudos, ficariam ali, eternos até na morte. E eu não sabia mais ficar, assim como o tempo, eu diluía. E de não ouvir mais uma palavra nova eu fui perdendo a voz. Fui ficando de canto naquela casa grande.

Ouvi Mãe chamar: Hora do almoço!...

A música Na hora do almoço, de Belchior, integra o compacto duplo lançado em 1971

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Paralelas (ou "A Macabéa e a Bailarina")

Carmélia Aragão

Em cada luz de mercúrio

Vejo a luz do teu olhar

Passas praças, viadutos

Nem te lembras de voltar

Belchior

Talvez, um dia, Ângelo, quando você voltar, vou pedir que se deite no chão para eu desenhar o

contorno de teu corpo. Vai parecer mau gosto, eu sei, encontrar o contorno deslocado de um corpo chapado, aqui, no chão da sala, tal como a perícia costuma fazer nos locais do crime. Mas não é crime. É saudade. É você, Ângelo. É deitar dentro da sombra do teu corpo, Ângelo, e me sentir abraçada pela tua ausência. A gente era as sobras da noite: a paraíba e a bicha preta. As tristes alegres figuras, como você mesmo dizia, toda vez que começava a contar nossa

história: do encontro da Macabéa com a Bailarina...

A música Paralelas, de Belchior, integra o álbum Coração Selvagem, lançado em 1977

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Sujeito de sorte

Por Jeff Peixoto

O ano de 2015 se despedia com a luz dos fogos de artifício a queimarem no céu, com o som estridente de uma contagem regressiva feita por aquela multidão que vestia branco. O certo é que aquele ano que terminava trazia uma tristeza imensa que tomara conta de Gaspar. Um dia antes, um jogo de conspirações sobrenaturais fez com que um sólido relacionamento de cinco anos se despedaçasse como se fosse um velho copo americano que beija o solo. Sua noiva, Christine, resolvera que o ano novo que se apresentava não seria mais com ele. De onde deveria

ter vindo a crueldade daquela mulher? Afinal, não se dá cabo de uma relação assim, numa virada de ano. E Gaspar se embebedou com os espumantes mais caros que o dinheiro podia comprar, banhou-se com eles. Fumou charutos cubanos e se queimou com eles. Beijou bocas vadias e se entristecia cada vez mais a cada beijo barato. Queria Christine de volta. Queria já. Mas Christine tomara sua decisão, aparentemente impulsiva, de caso pensado, já com todas as noções de causa e efeito, tendo toda a certeza de que não queria mais. E não quis. Nunca mais...

A música Sujeito de sorte, de Belchior, integra o álbum Alucinação, lançado em 1976

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Todo sujo de batom (ou "Uma balada nova falando de brotos, de coisas assim")

Por Xico Sá

Ela havia levado um bolo do namorado ou daquele cara que só promete. Ele estava apenas caminhando sem rumo pelas ruas do centro da metrópole como qualquer outro rapaz sem cartaz. Ela foi até

o orelhão e ligou para o desalmado, tum, tum, tum... Ele teve a súbita compreensão do drama.

A primeira lufada do vento frio que veio do vale do Anhangabaú zombou de fazer um S de solidão com o cachecol vermelho da moça. Somente ele, um suburbano tão sentimental, leu tudo que se passava naquela cabeça. Se tivesse mais algumas pratas no bolso, a convidaria para um chope com bauru no Ponto Chic, contaria um pouco da sua história ‒ não para impressioná-la, não trouxera nada de tão romântico assim dos finados anos 80...

A música Todo sujo de batom, de Belchior, integra o álbum Mote e Glosa, lançado em 1974

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Divina comédia humana (ou "O amor é uma coisa mais exótica que um conto em terza rima")

Por Ricardo Kelmer

Mentre che piena di stupore e lieta

l'anima mia gustava di quel cibo

che, saziando di sé, di sé asseta

Dante Aliguieri - A Divina Comédia

A sombria floresta de Beatriz anunciou-se naquela tarde de sábado, num ponto de ônibus do centro, após ela sair do culto na igreja. Anunciou-se nos olhos do atraente moço de porte atlético que lhe pediu informação. Com simpatia, ela lhe explicou que ônibus deveria tomar, e era o mesmo que ela tomaria, ora veja. E juntos sentaram, ele com sua mochila vermelha, ela com a bíblia ao colo, quase a mão dele em sua mão. Chamava-se Antonio, e Beatriz soube que estudava filosofia, mas gostava mesmo era de ser goleiro, e nos fins de semana jogava por times de bairro, e ela achou isso tão lindo... Ele desceu primeiro, mas antes do ônibus os separar, correu até embaixo da janela e a convidou, Vai me ver jogar amanhã, e ela seguiu o resto do percurso a conversar manhosa com as estrelas, enquanto em seu peito borbulhava a nascente do rio a que chamam os poetas perdição.

Eu te amo, eu te amo, ela disse e repetiu ao ouvido dele, sussurrando baixinho. Lá fora, a última

estrela se despedia e o amanhecer clareava aos poucos a suíte do Dante motel. Eu te quero tanto, meu goleirão, ela murmurou, lembrando que horas antes o admirava embaixo das traves, e reparou que, dormindo, ele parecia um anjinho. Beatriz beijou-o nos olhos e agradeceu ao seu deus pela dádiva daquele amor imenso, que surgira num bobo encontro casual, e agora, um ano depois, a instalara definitivamente no céu. Então Antonio se aconchegou e Beatriz sentiu a urgência de seu desejo, e ela nem sabia mais quantas vezes nas últimas horas haviam se amado.

Ele a beijou com ardência, depois a virou de costas para ele e aguardou que ela se preparasse, e ela, percebendo vazio o tubo de lubrificante, não teve dúvidas: Ah, vai sem gel.

Um dia Antonio sumiu, simplesmente sumiu, sem deixar um mísero bilhete, sem que houvesse discussão ou algo que pudesse deixá-lo bravo. Só pode ser uma brincadeira, ele sempre gostou de me pregar peças..., Beatriz disse para si mesma, sem encontrar explicação convincente. Mas as semanas se passaram e ele não voltou, e da vida fez-se o limbo, a angustiante espera da definição que não vinha, a existência uma peça suspensa em pleno ato. O que fazer com o amor que tanto dá sentido ao tempo e depois, de uma hora para outra, parece que disso se arrepende? Era o que pensava quando, pesquisando os sites de futebol de bairro, soube que Antonio jogaria naquele tarde em outra cidade ‒ e para lá Beatriz se mandou. Torceu por ele o jogo inteiro, no alambrado encostadinha, engasgada num choro que ela segurou firme... até vê-lo tomar um gol no fim da partida, e foi exatamente aí que ela entendeu que estava tudo acabado, que a eternidade daquele amor se desmanchara no ar, feito uma estrela cadente.

Na floresta escura dos meses seguintes, sonhava à noite com Antonio, ele jogando e ela torcendo, mas ele sempre olhava para ela no momento errado e, angustiado, tomava o gol. Solidão e desamparo foram suas companhias inseparáveis, e nem as orações na igreja trouxeram luz aos subterrâneos do seu desgraçado ser. Então, na agência lotérica em que trabalhava, no nono subsolo do shopping, ah, e como combinavam com sua alma os subsolos, um dia o sol voltou. Uma antiga amiga de colégio, Carla o nome dela, após receber o troco da mega-sena, a reconheceu: Beatriz, é você? Daí, foi o chope após o expediente, as boas lembranças colegiais revividas com alegria, mais dois chopes, tantas coisas para contar, outro chope ‒ era a velha amizade que retornava.

Um mês depois, quando Carla precisou dormir em seu apartamento, e a amizade já cedia espaço aos carinhos e estes à sedução, elas consumaram na cama, abençoadas pela noite estrelada, aquilo que em seus corpos ansiava por acontecer.

Ironias do destino: amigas de colégio, anos sem se ver, e agora lá estão elas tornadas outra vez

adolescentes, peles coladas noite e dia, ternamente apaixonadas. Beatriz frita os bolinhos prediletos de Carla, que desenha corações coloridos no caderno de Beatriz, que, da janela do quarto, suspira feliz para as estrelas, recuperada de seu passado sofredor. Porém, naquela noite na igreja, o pastor bradou enfático: A mulher nasceu para o homem, e aquela que desobedece às leis divinas sucumbirá na condenação, para sempre amaldiçoada!!! Ela voltou para casa e buscou dormir, mas as leis divinas não permitiram, e foi assim que abandonou a igreja, trocando-a por outra que a aceitava, a ela e seu pecaminoso amor. E tudo se resolveu, mas só até o dia em que o fantasma

do passado ressurgiu na tela do celular: era Antonio, que dizia ter errado, implorava por perdão e pedia encarecidamente um encontro. Assustada, Beatriz desligou, mas ele insistiu e ela teve de explicar que seu amor agora era de outra pessoa, e que ele a esquecesse, por favor.

Bastou aquele telefonema para castigar as certezas de Beatriz, substituindo a paz celestial que Carla trouxera aos seus dias por aquele pesadelo dos demônios. O amor que, ao custo de um mar de lágrimas ferventes, jurava haver esquecido, voltava para lembrá-la daquilo que tão bem ela sabia. Sim, apesar de tudo ainda amava Antonio, sim, e agora a profundidade desse amor vinha assombrá-la num íntimo e cruel confronto. Na semana seguinte, após acordar de uma noite em que não brilharam estrelas em seu céu, Beatriz foi até a cozinha, onde Carla preparava o café, respirou fundo e lhe pediu imensas desculpas por tê-la envolvido nos descaminhos de sua alma tresloucada, sua pobre alma que no amor parecia sofrer de disritmia. A cena é tão melancólica: Carla escutando a tudo em silêncio, e ao fim pegando suas coisas e indo embora, deixando no ar a pesada sombra das palavras que no peito preferiu calar. Na cozinha fica Beatriz, encostada à parede, massacrada pela tristeza de saber que fizera o que devia ser feito, enquanto na mesa o café esfria.

Nossa história bem que podia terminar aqui, com a mocinha, enfim purgada de seus pecados, vivendo com seu amado na bem-aventurança seculum seculorum ‒ mas, ai, ai, é justamente quando julgamos ter a gerência da vida que a própria vida trata de tudo bagunçar. Acertada outra vez com seu adorado goleiro, embalada novamente pela melodia das estrelas, Beatriz, surpresa, vê-se saudosa de tudo que tinha com Carla, e experimenta em si a estranha contradição de saber-se amada e amando, mas... incompleta. Antonio a abraça, compreensivo, e diz que em nenhum momento lhe exigiu exclusividade, e que se ela ainda ama a ex-namorada, ele perfeitamente entenderá. Mas se você me ama, como pode aceitar que eu ame também a outro alguém, perdeu o senso, foi?, ela pergunta, confusa, e ele explica o que aprendeu nos dias em que duelava no inferno contra sua própria possessividade: que só há salvação no amor que liberta. Naquela mesma noite, na igreja, ao ouvir o pastor pregar a fidelidade e a monogamia, Beatriz nem esperou pelo fim do sermão: ergueu-se decidida, pegou de volta o dízimo que deixara na caixinha, saiu e foi até a casa de Carla, e contou-lhe, emocionada, que havia finalmente se libertado e encontrado a iluminação de sua vida inteira. Bem, a história ainda deu umas boas voltas, é vero, mas para encurtar: Carla resistiu, resistiu, mas um dia também encontrou a luz, aleluia!, e semana passada, inclusive, aceitou ir com Beatriz ver Antonio jogar ‒ mas deu-se o direito de não aplaudir suas defesas, porque afinal ela ainda não está tão iluminada, tem que dar um tempo, né?

E assim vão os três, novos atores para essa velha comédia de sucesso chamada amor, onde ouvir as augustas estrelas não garante absolutamente nada, e, como bem nos ensina a terza rima, tudo é eterno enquanto não vem a palavra derradeira.

A música Divina comédia humana, de Belchior, integra o álbum Todos os Sentidos, lançado em 1978

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Velha roupa colorida (ou "O passado nunca mais")

Por Roberto Maciel

Sim, isso é uma carta, meu amigo. Ou uma conversa. Ou não, como o antigo compositor baiano e o poeta louco americano me diziam.

Só escrevo desse jeito porque não sei onde estou e nem aonde vou. Não sei quando parti nem sei se vou voltar. Tenho medo de ser denso, e disso nunca fiz segredo. É o medo que já aconteceu e também o medo do que já aconteceu. O medo que está logo ali, não é? Sempre. Dobrando a esquina, há perigo e não há mapa do tempo. Um Rio, um Porto Alegre, um Recife, medo Fortaleza, medo Ceará, Paranapá. Avião. Sempre.

É que agora muito se perdeu de vista, rumou para bem longe daquela cidade de sobrados, de sobras, de tanta luz que esbanja sombras. O passado nunca mais.

Há um estranhamento, uma ânsia esquisita. Nem sei se tenho precisão para enxergar aquilo, ou dentro daquilo, a importância do que eu mesmo fiz.

Tenho por ora vivido de memórias, algumas forçadas, outras alheias. São notas e impressões que se misturam em tons de diários ou de diálogos que nunca tive, mas acabei tendo.

Poderia escolher sentar numa praça qualquer, embriagado, congelando, esperando a morte me achar, e conversar com pessoas que ouvi e li. Na rua, em grupo reunido:

‒ Salve, senhor Kerouac, já botei o pé na estrada.

‒ Olá, senhor Zimmerman, tento enxergá-lo como me enxergo no espelho, gaita e violão às mãos,

fazendo pose de trovador.

‒ Ei, senhor Morganfield, senhor Jagger, senhor Richards, como pedras rolantes inda careço de turvar um trisquinho a mais as águas do Acaraú, do Jaibaras, ora tão escassas, ora tão barrentas.

Três passarinhos no degrau da minha porta: um corvo, um assum preto e um merlo-preto. Jack,

Dylan, Muddy. Ou Poe, Gonzaga, McCartney. Poderiam cantar melodias bonitas e verdadeiras - mas aí seria um reggae, não uma solução nem um tango argentino, que me vai bem melhor como mensagem para você.

Não nos preocupemos com as coisas, pois. As pequenas coisas vão acabar de boa, nothing to blues.

Tudo o que poderia ter falado, falei. Se não falei, ao menos construí memórias para torná-las verdades.

Mas memórias que não são verdades não são saudades. No passado, a mente mente e o corpo é indiferente, indivisível. E novas mudanças nem sempre acontecem.

Careço também de brincar nas águas fundas do Mucuripe. A propósito, como estão as velas e as mágoas? Eu ainda as tenho, mesmo que em rabiscos e telas mal terminadas feitas daquele algodão que

outro dia desses lá no campo ainda era flor.

Sinto falta, ou não sinto, de um porto - pode ser seguro, pode ser um vinho, também pode ser alegre. Porque loucura, chiclete e som podem ainda grudar como símbolos de uma transviada juventude que nunca tive, uma juventude James Dean, como as meninas que nunca mais convidei para correr no meu carro.

Coisas de um tempo que hoje é antigo, que não me serve mais, que não nos serve mais. Coisas de uma quarta-feira às cinco da manhã.

Coisas como aquele toque Beatle: "ela está se mandando de casa". Até parece que foi ontem a minha mocidade, não é? Saindo de casa depois de viver, depois de viver sozinho. Hoje, eu quero segurar a sua mão.

Não quis nem pude me aquietar. Não admito mais a ideia de ser uniformemente plural, como gente jovem reunida. Sou singular, sei e sinto, e sequer penso em alimentar outra condição. Ou outra contradição.

Poderia estar escrevendo agora para Edgar, como se querendo avisar que o corvo permanece solto na noite infinda. E para quem vive solto mas não pode voar o que resta é cantar de dor. Ou cantar a dor.

O passado, essa imensidão que a gente enxerga às vezes ao longe e satisfeito, às vezes tão perto e voraz, não nos colore nem como passado, quanto mais como roupa.

Pode parecer angústia, mas não é. Tudo são imagens, versos, letras, melodias. Não é pouco, porque é assim que a vida se monta e se desmantela.

Escrevo desse jeito porque não sei o tempo que tenho ou mesmo se terei algum tempo. Não sei se parti e, por isso, não sei se quero voltar. Sou um sujeito de sorte.

Afinal, o que há algum tempo era novo, jovem, hoje é antigo. E precisamos todos rejuvenescer.

A música Velha roupa colorida, de Belchior, integra o álbum Alucinação, lançado em 1976

Aqui, você encontra trechos e dois textos completos do livro Para Belchior Com Amor, organizado pelo cronista e poeta Ricardo Kelmer em 2016. O conteúdo completo está à venda na loja virtual Amazon, neste link. O texto abaixo é assinado por Ricardo, servindo como apresentação do livro:

A ideia de homenagear Belchior em seu aniversário de 70 anos me veio em 2015, quando pensei em montar um show musical que contemplasse também os aspectos literário e filosófico de sua riquíssima obra, que a mim me surpreende desde a adolescência. Impossibilitado de concretizar a ideia inicial, pensei em escrever um livreto com contos baseados em suas músicas, mas desisti, ciente de que não teria fôlego.

Veio então a ideia de organizar um livro que reunisse autores conterrâneos de Belchior, cada um

escolhendo uma música e escrevendo um texto literário (conto, crônica, carta ou prosa poética) baseado nela. O resultado é este livro que você agora tem em mãos. Seus catorze textos pretendem explorar algumas das infinitas possibilidades literárias que oferece a obra desse cearense de Sobral, que, por si, já é literariamente significativa.

Dentro da diversidade da cultura brasileira, Belchior é um nome plenamente reconhecido por seu talento e a originalidade de seu trabalho, no qual une a técnica esmerada da composição melódica

com a feitura literária das letras, enriquecidas com filosofia, erudição popular e cultura pop e, muitas vezes, estabelecendo um curioso diálogo com a obra de outros poetas e artistas.

A música de Belchior fala de amor, paixão e desejo, da liberdade rebelde do ser e de existências

robotizadas, da solidão das grandes cidades e da universalidade do sertão. Mesmo tendo sido, em boa parte, criadas nos anos 1970, suas canções mantêmse atuais, ganhando releituras e conquistando novos admiradores. Sua polêmica decisão de ausentar-se dos palcos e dos holofotes da mídia conferiu-lhe status de lenda viva e reacendeu o interesse por ele, provocando saudáveis discussões sobre a função do artista e o sentido da vida, e também sobre o papel do indivíduo quando confrontado com um sistema que o oprime e o seduz diariamente com o vil metal, comprando seus sonhos mais verdadeiros até que deles restem tão somente a dor e a frustração de não tê-los vivido.

Espero que estes textos proporcionem às pessoas uma rica experiência de imersão na obra desse

formidável artista, e que instiguem a curiosidade de conhecê-la melhor.

E você, Belchior, se este humilde livro um dia chegar às suas mãos, espero que sinta-se carinhosamente abraçado, e que receba de volta o tanto amor que sua arte trouxe e continua trazendo para nossas vidas.

Obrigado por tudo.

Ricardo Kelmer

São Paulo, agosto de 2016


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